Como
prometido aqui deixo o excerto do livro “Karma – O que É, O que
Não É, E Porque É que Importa”, de Traleg Kyabgon, os capítulos
3, 4 e 5, para poder fazer mais uma abordagem, desta feita, ao tema
do Karma mas ainda na sequência do post anterior continuar com uma
pesquisa sobre o Eu e a Consciência. Sei perfeitamente que o que
aqui transcrevo precisava ser mais aprofundizado, mais questionado e
discutido, pelo menos para mim mas não tenho o arcabouço
intelectual para o fazer da melhor forma e, por outro lado, não
tenho um leque variado de pessoas com as quais possa discutir isto, o
que, como é óbvio, limita imenso. Mas existe imensa literatura
sobre estas temáticas, se puder, num futuro a médio prazo, darei
mais algumas dicas de livros sobre estas temáticas. No entanto
gostaria de referir que “fabriquei” três ideias interessantes,
no mínimo, sobre isto que li: penso que somos todos seres de bardo,
o bardo em que estamos é irrelevante, e que, karmicamente ou não,
já nos estamos a projectar num futuro com base num determinado
passado mas, a qualquer momento, tudo muda, consciente ou
inconscientemente, por isso não percebo bem a função do karma a
não ser para a nossa perceção aqui enquanto no bardo da vida; a
outra é a ideia de que a verdade absoluta é o vazio. Mas,
humildemente e a medo acrescento - não há absoluto sem o cheio, o
seu oposto ou contraparte, o absoluto é o vazio e o cheio, por
outras palavras o absoluto é o nada e o tudo, só assim há absoluto
porque de outra forma só há parte(s)…a última coisa que retive
foi a ideia da «navalha de Prasangika» de Nagarjuna, a qual não
vou referir aqui para que leiam o texto e o avaliem da melhor forma.
Ao lê-la rebolei os olhos, primeiro estranhei-a mas, confesso, que,
cada vez mais, essa ideia já se estava a entranhar em mim há imenso
tempo. E esta é para mim a ideia chave destes capítulos Sem mais
demora, passo, então, à transcrição dos referidos capítulos:
A
CONTRIBUIÇÃO DA ESCOLA YOGACHARA PARA A TEORIA KÁRMICA
Abordámos
alguns dos argumentos essenciais que Buda expôs nos seus discursos
originais acerca do karma e como a apresentou como uma teoria em
aberto. Esta característica é precisamente o motivo para que tenha
continuado a desenvolver-se. Está longe de ser um livro fechado, o
que é claramente evidente no que diz respeito à tradição
Mahayana, onde a teoria continuou a evoluir em torno dos ensinamentos
originais de Buda. No Mahayana, há duas escolas principais – a
Madhyamaka, ou escola do «Caminho do Meio», e a Yogachara, por
vezes conhecida como Cittamatra ou escola «Mente Apenas». A
Madhyamaka concentra-se na noção de vazio (shunyata), que veremos
mais adiante, mas agora atentaremos aos yogacharyas, já que tiveram
um impacto mais discernível na teoria do karma, outorgando-lhe uma
formulação mais sofisticada. «Yogachara» significa «praticante
de yoga». Yoga, neste contexto, refere-se à prática da meditação,
não às posturas físicas do hatha yoga. Por conseguinte, os
yogacharyas enfatizam a importância da experiência meditativa.
O
significado da teoria da «mente apenas» não é que tudo seja visto
omo mental. Aponta para o facto de tudo se basear na experiência
pessoal e de sermos incapazes de ter uma conceção extramental da
realidade. Por outras palavras, declara que a mente não pode ser
retirada da equação quando falamos de «realidade». Não temos
forma de perceber a realidade sem a mente. Portanto, tudo o que
experienciamos, mesmo «a realidade em si» só pode ser
experienciada pela mente. Não podemos sair da nossa mente e proceder
então à observação da realidade. «Mente apenas» não significa,
como alguns parecem pensar, que encaremos um objecto físico, um
imenso rochedo, por exemplo, como sendo a nossa própria mente. Se
esse grande pedregulho nos caísse na cabeça, morreríamos, e não
poderíamos afirmar: «Oh, isso é apenas a mente». Nenhum filósofo
que se respeitasse proferiria uma teoria tão absurda, que não é o
cerne da teoria da «mente apenas».
O
ímpeto da filosofia yogacharya foi a perceção de uma fraqueza na
teoria budista da consciência e identidade própria. Havia alguma
pressão de várias escolas e críticos hindus, como a Vaishnava,
Yoga, Sankhya, Mimamsa e Vedanta para se apresentar alguma espécie
de explicação de continuidade. Sem um «eu», argumentava-se, como
poderia haver renascer? Os críticos
do budismo também não se satisfaziam com a ideia de renascimento
como simples continuação de um fluxo de consciência, já que isso
seria apenas uma série de estados de consciência a persistir ao
longo de um período de tempo e não teria em conta a continuidade da
memória e do quê e de onde vem a memória. De forma similar, as
lacunas de inconsciência na vida presente – se entrarmos em coma
ou algo parecido durante algum tempo e depois recuperarmos a
consciência -, se estes estados conscientes da mente não operassem,
como seria então possível que, ao despertarmos e recuperarmos a
consciência nos recordássemos que éramos nós e começássemos a
relembrar experiências passadas? Como explicar esta lacuna se a
consciência se encontra num fluxo perpétuo?
Para
responder a estas questões, os yogacharyas apresentaram uma teoria
acerca de um estado de consciência, ou de inconsciência, dependendo
da perspetiva, chamado alayavijnana,
que muitas vezes se traduz como «depósito da consciência». O que
isto significa, quando aplicado às situações acima descritas de
morte e coma, é que podemos tornar-nos inconscientes durante algum
tempo, ou morrer e renascer, mas, a um nível inconsciente da
consciência, por assim dizer, encontra-se latente um repositório de
todas as nossas características e disposições kármicas. Por isso
se chama ao alayavijnana
o «depósito da consciência»
(por vezes, o conceito é traduzido como «substrato de
compreensão»). É um estado mais permanente do que os nossos
estados consciente.
Os
yogacharyas tiveram o cuidado de ressalvar, contudo, que o
alayavijnana não
tem uma natureza permanente nem é, consequentemente, uma substância
da alma, já que, por definição, uma alma não sofre alterações.
O «substrato da compreensão» muda de facto e pode ser
transformado. Na verdade, diz-se que passa por diferentes estágios
de transformação, mesmo quando não nos dedicamos à prática da
meditação ou algo do género. Irá sempre transformar-se, nalguma
direção, seja como for. Funciona como repositório das nossas
características e disposições kármicas, devido à sua natureza
comparativamente estável – comparada com os nossos pensamentos,
sensações, emoções e tudo o mais flutuam continuamente na nossa
consciência, num perpétuo ir e vir. Nada é estável na
consciência, segundo o budismo, então, e por conseguinte, nada pode
explicar a identidade própria, a não ser recorrer a uma teoria da
alma ou do superego, ou a alguma espécie de identidade global do
ego. Portanto, foi através do depósito da consciência que os
yogacharyas explicaram como recordamos as coisas, atravessando até
os estados inconscientes por que podemos passar durante determinado
período de tempo. De acordo com a mesma premissa, o depósito da
consciência permite a transmigração de uma vida para a seguinte.
No modelo yogachara, a identidade do ego não se baseia no
alayavijnana, mas
antes noutra forma de consciência, a que é atribuído o termo
«mente egoica». A «mente egoica» pensa erroneamente que a
consciência armazenada é a sua própria base, a base da sua própria
identidade egoica. Julga que há um «eu», um ego, como algo
permanente e imutável.
O
alayavijnana encontra-se
ligado à nossa experiência através daquilo a que se chama as seis
formas de consciência, as quais incluem as consciências dos cinco
sentidos e a consciência do sentido mental. É importante observar,
neste ponto, a distinção budista dos órgãos dos sentidos e das
consciências dos sentidos. Quando vemos coisas, diz-se que isso
acontece através da nossa consciência do sentido visual, quando
ouvimos, deve-se à nossa consciência do sentido auditivo,
e o mesmo se aplica aos outros sentidos. Portanto, há cinco
consciências dos sentidos e, para além disso, há a consciência do
sexto sentido, que é a mente pensante, o estado consciente, aquele
que planeia e pensa, com o qual ficamos imediatamente conscientes de
tudo. Toda a informação que nos chega aos cinco sentidos é
processada pela sexta consciência, a qual por sua vez é processada
ou apropriada, pela sétima consciência, a mente egoica. É a forma
como a informação passa pelas seis consciências e pela mente
egoica que deixa certas marcas na oitava consciência, o
alayavijnana, ou depósito
da consciência.
O
depósito da consciência não é uma entidade permanente mas, não
obstante, persiste ao longo de um período de tempo e, por causa
disso, consegue reter impressões kármicas. A estas impressões, ou
depósitos de energia psíquica, atribui-se o termo vasanas.
Na literatura tradicional, um vasana
é descrito através da analogia de colocar algo de odor muito forte,
como um par de meias por lavar, numa gaveta. Se o deixássemos lá
durante meses, quando abríssemos a gaveta certamente seríamos
avassalados pelo cheiro. Mesmo que deitássemos deitássemos fora as
meias e tentássemos eliminar o cheiro, isso apenas teria um efeito
marginal – da vez seguinte que a gaveta fosse aberta, o cheiro
continuaria presente. De modo similar, diz-se que as impressões
kármicas se armazenam no alayavijnana, a
oitava consciência, que retém as impressões, ou o «perfume» dos
vasanas. Os vasanas são as
atividades mentais subjacentes de que não temos consciência. São a
subcorrente da nossa atividade mental, os pensamentos, sentimentos e
emoções inconscientes. Quando morremos, quando transitamos de uma
forma de existência para outra, algo continua a ser transferido
através da função da oitava consciência, que tem, por assim
dizer, os dados armazenados. Não devemos, porém, imginar um espaço
de armazenamento concreto, vendo antes o espaço de armazenagem
concreto, vendo antes o espaço de armazenagem como parte do que foi
armazenado.
Segundo
a visão yogacharya, é assim que impressões kármicas são deixadas
no depósito da consciência, onde permanecem dormentes. Não temos
consciência delas e, por causa disto, formam-se hábitos, os quais,
como sabemos, são bastante involuntários. Podemos nem saber porque
fazemos isto ou aquilo, porque pensamos uma coisa ou outra, ou porque
nos sentimos de determinada maneira numa dada altura; e a razão pela
qual estes hábitos nos confundem é que o impulso que existe por
trás deles provém do equivalente budista do inconsciente,
poder-se-á dizer. Não temos noção da fonte. Outra distinção é
feita então entre a atualização destas características e
disposições e as próprias características e disposições
(dormentes). Quando as características e disposições se atualizam,
tornam-se conscientes, irrompem o estado consciente, enquanto, na
maioria do tempo, permanecem inconscientes e sob a nossa perceção.
Assim, não é apenas o continuum
da consciência que é o veículo das nossas características e
disposições kármicas, mas também o alayavijnana. É
este último que transporta características e disposições kármicas
para outra vida.
Os
yogacharyas apresentaram outras elaborações que têm algumas
consequências para a teoria kármica. Uma das mais importantes é a
noção de natureza budista, à qual simplesmente não poderemos
fazer justiça aqui. Outra foi a formulação de consciências
diferentes e de como consciências iludidas são capazes de se
transformar em contrapartes de consciência sábia. Isto é o
tantrismo, como agora é comummente conhecido. As cinco consciências
sensoriais, a sexta consciência mental do sentido, a mente egoica e
o alayavijnana (depósito
de consciência) são capazes de se transformar, processando-se no
seu próprio nível, em consciência sábia. Neste aspecto, os
yogacharyas introduziram a ideia de uma continuidade entre tipos de
mente iludida e a mente sábia e acreditavam que, assim, a transição
de ser iludido para ser iluminado se tornava bem mais inteligível (o
que está intimimamente ligado com a noção da nossa natureza
budista). É útil para subscrever a teoria do renascer, bem como
para ter a noção dos oito níveis de consciência. Os yogacharyas
contribuíram, definitivamente, para a sofisticação da teoria do
karma. Tornaram mais evidente que o karma se perpetua através de
níveis de consciência. O alayavijnana afecta
a mente egoica, a mente egoica afecta as consciências sensoriais e
vice-versa, as consciências sensoriais afectam a mente egoica, que,
por sua vez, afecta o alayavijnana e
assim sucessivamente, num e noutro sentido.
OS
ENSINAMENTOS DOS BARDOS DA MORTE, DO ESTADO INTERMÉDIO E DO
RENASCIMENTO
Outra
categoria de ensinamentos do budismo tibetano que está profundamente
relacionada com o karma e o renascer encontra-se nos ensinamentos dos
bardos, que se baseiam essencialmente no modo de pensar yogacharya,
bem como no madhyamaka. Estes ensinamentos podem ser encontrados com
mais facilidade no famoso Livro Tibetano dos Mortos,
como é conhecido no Ocidente. Os ensinamentos dos bardos enfatizam a
experiência de «mente de luz límpida» e a necessidade de atenção
sustentada quando morremos. São ensinamentos acerca de como morrer e
como preparar a morte, de forma a apreciar o desenvolver da
verdadeira natureza da mente, luz límpida, no meio do processo da
morte. Para além de nos instruírem acerca da morte física em si,
os ensinamentos indicam-nos como permanecer consciente nos bardos, ou
jornadas intermediárias entre a morte e o renascimento. «Bardo»
significa basicamente um «intervalo» ou «estágio intermediário»
e há vários tipos diferentes, embora por norma se fale de quatro. A
nossa vida presente, o tempo desde que nascemos até à nossa morte,
na verdade é considerada um bardo, ou estágio intermediário. É
chamado o «bardo da vida» e no budismo há sempre a noção de que
o nascimento e a morte estão presentes em cada momento desta vida, à
medida que envelhecemos. Mas deixemos isto de parte para avançarmos
para os bardos subsequentes.
O
primeiro dos bardos a partir deste ponto chama-se o «bardo de
morrer». A descrição budista tibetana de morrer diz respeito a
experiências específicas de morte enquanto os elementos se
dissolvem. A dissolução física dos cinco elementos, que abordámos
ao de leve, baseia-se em ensinamentos tântricos indianos. Os
elementos sem si não devem ser interpretados de modo literal. Por
exemplo, os cinco elementos na sua forma bruta são o elemento da
terra, que é o corpo físico; o elemento da água, ou seja o muco,
saliva e outros; o elemento do fogo, que é o calor do corpo; o
elemento do espaço, ou as cavidades do corpo; e o elemento do vento,
o fôlego. Diz-se que os elementos físicos se dissolvem quando a
morte se aproxima, o que significa que o organismo físico começa a
desfazer-se – o elemento fogo dissolve-se, e o nosso corpo perde
calor; o elemento da água dissolve-se, e começamos a sentir sede. O
elemento vento dissolve-se, o que nos dificulta a respiração, e o
elemento terra dissolve-se, deixando o corpo rígido, fazendo com que
as cavidades colapsem, e assim sucessivamente. Enquanto estas coisas
sucedem, passamos pela experiência das aparições. Temos
experiências quase alucinatórias, onde nos vemos envolvidos numa
espécie de nevoeiro fumarento, entre libélulas ou fenómenos
brilhantes. Isto pode acontecer quando os elementos se dissolvem uns
nos outros, e a isto chama-se bardo chikhai,
ou «bardo aquando da morte». Quando o nosso corpo começa a
dissipar-se ou a deteriorar-se e, basicamente, deixa de funcionar, a
nossa consciência começa a diminuir, tornando-se cada vez mais
turva e confusa, até que acabamos inconscientes. Perdemos os
sentidos, mas apenas por breves instantes. É então que a morte
ocorre. Ao fim de um curto período de tempo, regressamos à
consciência, de certa forma revividos, e apercebemo-nos de
que morremos. Imediatamente antes disto, porém, no momento em que
tudo se apaga no preciso instante da morte, há a possibilidade de
compreender a natureza da mente, ou consciência, separa-se do corpo.
Nesse momento, temos a oportunidade de perceber conscientemente a
exposição de diferentes formas de luz, em particular a ösel,
isto é, luz ou luminosidade límpida. O Livro Tibetano dos
Mortos chama-lhe «luz de
consciência».
Segundo
o budismo tibetano, se nos tivermos dedicado aturadamente à
meditação e desenvolvido uma noção de perceção e da atenção,
se tivermos desenvolvido concentração, será relativamente fácil
reconhecer esta luz aquando da morte. No entanto, a maioria das
pessoas, devido às suas ilusões, ignorância e obscurantismo, em
vez de aceitar a luz, em vez de se voltar para ela, procura
escapar-lhe. Neste momento, entramos naquilo a que poderá chamar-se
o bardo concreto, o estágio intermédio entre a morte e o renascer.
Depois de entrarmos no bardo propriamente dito, surge todo o género
de alucinações, em primeiro lugar seres muito benignos e de ar
compassivo, que irradiam
vários tipos de luz. Depois, em dias subsequentes, surgem visões de
seres ferozes e de aparência aterrorizante. Poderemos ouvir sons
muito estranhos e assustadores, como o trovão, enquanto seres irados
ganham um aspecto cada vez mais sinistro. Vemos um leque de cores
diferentes – azul, amarelo, vermelho, verde e outras -, feixes de
cores voltados para várias direções. Mesmo assim, neste estado de
bardo, se formos capazes de perceber que estes seres não são mais
do que projeções da nossa própria mente que surgem dos nossos
próprios conflitos emocionais, como ciúmes ou zanga, e se evitarmos
dar-lhes uma realidade própria, será possível atingir a iluminação
neste momento.
As
instruções básicas que nos são das para esta fase do bardo
resumem-se a tentar ver estas entidades e visões como simples
manifestações da nossa mente e usar as luzes coloridas quase como
um guia ou um mapa. As luzes que aparecem são essencialmente de duas
variedades, ou muito brilhantes ou bastante foscas. Devido aos nossos
hábitos, seguimos as luzes foscas, pois consideramo-las mais
confortáveis. Podemos ficar um pouco ofuscados pelas luzes
brilhantes, o que nos levará a recuar; mas é-nos aconselhado que
façamos o oposto. Devíamos seguir as luzes brancas e evitar as
foscas porque estas últimas representam a energia dos cinco venenos
e as luzes brilhantes a nossa energia sábia, as cinco energias da
sabedoria. Devemos seguir as cinco luzes brilhantes
e tentar evitar as mais escuras, esforçando-nos por permanecer
calmos durante todo esse tempo, cientes da manifestação da mente.
Se conseguirmos fazer isso, voltamos a ter uma oportunidade de nos
libertarmos nesta fase, a que se chama bardo chonyi
(O bardo do dharmata,
o bardo da realidade).
No
budismo tibetano, os ensinamentos dos bardos estão intimamente
ligados às divindades das práticas yoga, às práticas tântricas
de visualizar divindades pacíficas, iradas e noutros estados. Quanto
mais nos familiarizarmos com elas, mais provável será que
recordemos este tipo de experiência quando morrermos e passarmos
pelo estado bardo, vendo-as como produto da nossa própria imaginação
e não como completamente reais. São uma visão kármica, como se
diz, o que também é conhecido como uma visão impura. A nossa
tarefa é transformar esta experiência em visão pura. Na prática
tântrica, dar origem às imagens das divindades na visualização
chama-se «estado da geração». O «estado da geração» refere-se
a criar deliberadamente imagens, o que se opõe a simplesmente fechar
os olhos e esperar que imagens de grandes seres ou deuses surjam.
Damos origem a uma imagem de forma faseada. Por exemplo, no budismo
tântrico, poderíamos visualizar uma sílaba-semente, apenas uma
letra, que representa uma divindade em particular e, a partir dessa
sílada-semente damos origem, ou geramos, o lótus, o trono do lótus,
o disco solar e lunar, como
muitas vezes é referido, e a partir daí vamos visualizando
gradualmente a divindade por completo, seja qual for a divindade que
escolhemos. No final da prática, dissolvemos a divindade. Não
terminamos a prática de forma abrupta, mas antes dissolvemos a
imagem da divindade para o vazio, o que serve como uma espécie de
conclusão imaginária e filosófica.
Se
nos familiarizarmos com este tipo de prática, seremos capazes de
reconhecer essas imagens no estado post mortem
como semelhantes àquelas com que praticámos. Precisamos de manter
presente o contexto teórico budista geral, sendo que se entende que
a mente, seja como for, está continuamente a projectar todo o género
de imagens, na nossa vida presente, no nosso estado corpóreo, quer
dizer. Assim sendo, as próprias divindades representam vários
aspectos de nós mesmos, o que é a outra vertente deste tipo de
prática – uma familiarização gradual com esta capacidade mental.
Que visualizemos uma divindade irada ou uma divindade pacífica é
irrelevante, de certa forma, já que representam vários aspectos de
nós mesmos. Há esse benefício da prática, portanto, o de ficar a
conhecer as capacidades imaginativas da mente. Cientes disso,
permanecemos mais calmos durante toda a experiência. Quando
morremos, então, temos a oportunidade de compreender a natureza da
mente em vários pontos, mas aqui é ao despertar do breve estado
inconsciente descrito. Sem isso, mais uma vez, no estágio
intermédio, podemos despertar entre as visões descritas.
A
partir deste ponto, se ainda não reconhecemos uma mente de luz
límpida, somos propelidos, como se diz nos ensinamentos, através da
força kármica, para renascermos. Mas mesmo então temos uma espécie
de escolha, se nos tornarmos conscientes e conhecedores do que
realmente se passa. Se formos capazes de ficar com o que está a
acontecer, com atenção, neste estágio, seremos capazes de escolher
os nossos pais, onde nascemos, em que circunstâncias, e por aí
afora. Os ensinamentos proclamam que somos capazes de determinar,
neste momento, o nosso futuro renascimento, dependendo das nossas
próprias acções no bardo. Naturalmente, no primeiro estádio do
bardo, muito do nosso pensamento tem que ver com o passado, diz-se,
enquanto o segundo estádio tem mais que ver com o que acontecerá no
nosso futuro renascer. Em seguida, depois de termos recuperado a
consciência total, começamos a desenvolver aquilo a que se chama um
«corpo de bardo», que é algo diferente do que tipicamente se
imagina. A assunção é frequentemente de que o nosso ser, depois da
morte, se torna uma consciência desencarnada capaz de vogar, ou, num
sentido menos positivo, de ser atirada de um lado para o outro pelo
vento do karma, sem grande volição. No entanto, segundo os
ensinamentos, o bardo na verdade assume um novo corpo, um corpo
subtil, ou um corpo de bardo. Este corpo subtil de bardo pode ser
impercetível para nós mas, não obstante, é uma espécie de corpo.
Um ser de bardo é, por outras palavras, um ser incorporado – não
com um corpo sólido como o que temos agora, claro – mas não
desencarnado. Este corpo é capaz de cheirar e ouvir, por exemplo.
Não se dá o caso de o ser de bardo ver simplesmente com o olho da
mente, observando os nossos parentes enlutados, por exemplo. Na
verdade, vemos coisas como estas, e podemos passar por muito antes de
nos apercebermos de que partimos e fomos para o outro lado. De facto,
ainda cheiramos e ouvimos. O paladar não é referido, mas diz-se que
não requeremos comida sólida, o que não é surpreendente, mas que
vivemos do olfato. Talvez isto possa ser análogo ao modo como a vida
aquática se forma com corpos transparentes e muito finos a
moverem-se pelo oceano profundo, emitindo luz. Este corpo subtil, que
passa pelas várias experiências de aparições acima descritas, é
despido, descartado, antes de entrar no útero.
Antes
de nascermos, no estado prá-natal, começamos a ter premonições,
ou algo como visões da nossa vida futura, e começamos a procurar um
progenitor adequado, segundo os ensinamentos. Contidos pela nossa
própria ignorância, porém, poderemos escolher o ventre errado.
Escolher o ventre certo torna-se uma prioridade para o ser do bardo,
pelo que o ónus, neste momento, consiste de facto em resistir à
tentação de nascer demasiado depressa, o que é difícil, já que o
bardo é um estado muito desagradável para a maioria. Em termos
gerais, estaremos desesperados por renascer. Há uma sensação de
pânico presente neste fase, similar à de centenas de
espermatozóides a competirem por chegar ao óvulo, sendo que apenas
alguns afortunados conseguirão passar. Todos se atropelam. Ao longo
desta experiência, devemos tentar refrear-nos e pensar cuidadosa e
pacientemente acerca de encontrar um nascimento adequado. Os seres de
bardo conseguem ver os potenciais futuros pais, diz-se, e observar as
interações deles, descobrindo que tipo de pessoas serão. Há,
contudo, alguma curiosidade: Que tipo de carácter têm? Iria eu ser
feliz neste lar? Que tipo de irmãos terei? Quão espirituais serão?
Serão boas pessoas? Serão generosos? Nalgum ponto cumulativo destas
considerações, nasce-se.
Quem renasce desta forma, de uma maneira considerada e decisiva, é
considerado, no sistema tibetano, um tulku,
uma pessoa que exerceu alguma escolha e deliberação no seu regresso
ao mundo e que não foi forçada pela situação. Há muitos tipos
diferentes de tulku, e
os títulos não indicam necessariamente um ser iluminado, mas apenas
um ser algo evoluído em certos aspectos, com a capacidade de
escolher cuidadosamente o seu renascimento. Pensa-se que essas
pessoas têm certos dons espirituais e tendências intrínsecas para
quererem beneficiar os outros em graus variados. Em termos mais
gerais, a literatura tibetana é bastante pormenorizada acerca do
processo do nascimento, contendo descrições elaboradas do
desenvolvimento do embrião e por aí afora.
Os
ensinamentos de bardo na sua totalidade, portanto, têm como
objectivo instruir o praticante em duas coisas fundamentais: a morte
não é algo que deva ser temida e as experiências pós-morte podem
ser usadas para nosso próprio benefício. Não só a morte não deve
ser temida, como precisa de ser apreciada como uma oportunidade de
transformação que nos é oferecida. Significa uma
liberdade de todos os constrangimentos que nos contêm enquanto
estamos vivos: obrigações familiares, relações sociais,
impedimentos físicos, problemas emocionais, etc. As pessoas que já
enfrentaram perigo de morte sabem um pouco acerca disto, da forma
como o tempo e a realidade parecem comprimir-se de uma maneira
inexplicável e, não obstante, essas pessoas afirmam que a
experiência foi fortemente transformadora. Muitos sobreviventes
relatam ter obtido um novo alento. Todas as «coisas» carregadas ao
longo da vida, impossíveis de mudar, são um fardo que de repente
lhe sé tirado de cima. Similarmente, aquando da morte, tudo é
comprimido e a mente torna-se incrivelmente concentrada, clara como a
água e precisa, alheia a distrações ou preguiça. A consciência
torna-se muito refinada e subtil, imóvel e fortemente presente. Não
há perturbação, o que gera uma quantidade tremenda de energia
mental e psíquica e proporciona as indivíduos uma grande
oportunidade para despertar e avançar no karma, mesmo que não
tenham sido praticantes dedicados durante a vida. Este tipo de
jornada consciente de bardo torna-se mais viável com a orientação
de um guia capaz.
Quando
morremos, muito fica para trás, o que proporciona uma liberdade
maior para fazer coisas. Tal como se diz na vida: encerra-se um
capítulo, abre-se outro. A situação da morte é um limbo. Estar
num limbo pode ser uma coisa terrível, como é possível que o
próprio bardo seja mas, por outro lado, estar num limbo pode
funcionar de forma positiva se nos despedirmos da vida passada,
livres de todas as obstruções que temos experienciado. É possível
vê.lo como o próximo passo em frente, uma espécie de período
criativo, nesse sentido. A mensagem para o indivíduo, ou para o ser
de bardo, é: «Não tenhas medo; não há nada a temer no que vês,
ouves, cheiras. Permanece calmo, permanece forte». Desta forma, a
teoria do bardo e os ensinamentos do bardo enfatizam a morte como um
período de oportunidade, em vez de algo a ser receado.
Quase
tudo isto se encontra neste conjunto a que se chama ensinamentos do
bardo – as oito formas da consciência, as transformações da
consciência, a noção da natureza budista, a natureza luminosa da
mente e tudo o mais. Também introduzem os dois níveis de verdade na
forma como as aparições são tratadas. A forma como devem de facto
surgir-nos assemelha-se a um holograma; não como seres sólidos de
carne e osso, não como pessoas reais, vivas. Vemos uma aparição,
que é uma manifestação da verdade relativa, e então, ao
identificarmos a visão como emergente da nossa própria natureza
budista ou mente de luz límpida, vemos algo da verdade absoluta.
Achar que o que vemos com o olho da mente carece de qualquer tipo de
realidade substancial é ver o vazio. Assim, ao viajarmos
conscientemente no bardo, também conseguimos unir as duas verdades,
o que abordaremos no próximo capítulo.
AUSÊNCIA
DE KARMA – O VAZIO E AS DUAS VERDADES
O
karma é central para o budismo, na medida em que este discurso tem
prevalecido até agora e, no entanto, noutro nível, a derradeira
realidade do karma não é reconhecida. Nesta altura, os dois níveis
da verdade no budismo tornam-se relevantes: a realidade empírica e a
absoluta. O karma, por natureza, só possui realidade relativa e, por
causa disso, é algo que podemos transcender. O karma é algo que
precisamos de superar, na verdade. O que isto significa é ter como
objectivo superar não só o karma negativo, mas também o positivo.
Os dois tipos de karma levam-nos a renascer, e é o esgotamento das
nossas propensões e tendências kármicas o objectivo final.
A
escola Madhyamaka do Buda Mahayana, como referimos, juntamente com a
escola Yogachara, teria também uma importante influência filosófica
na noção de karma. Fundado por Nagarjuna no final do século II
E.C., o pensamento Madhyamaka explora a noção de duas verdades –
a verdade relativa e a verdade absoluta. O karma é visto como real
apenas em relação à verdade relativa, mas não em termos de
verdade absoluta, pois a verdade absoluta é o vazio. O karma, em si
mesmo, não tem uma natureza fixa. É um fenómeno; não é a
realidade. Mais uma vez, precisamos
de qualificar esta afirmação como uma expressão da perspectiva
absoluta. O karma tem, isso sim, realidade relativa. O argumento
fundamental de Nagarjuna era que o karma se cria na realidade através
da fixação mental, por ficarmos demasiado enamorados pelos nossos
próprios conceitos, ideias e pensamentos, pelas
nossas projeções mentais e a nossa tendência inveterada para
reificar tudo aquilo em que pensamos. Aos objectos dos nossos
pensamentos é dada uma realidade sólida, quer existam quer não. A
isto chama-se «imputação mental», mediante a qual providenciamos
muito mais atributos às coisas do que elas realmente têm. A
imputação ou projeção tem um imenso impacto no nosso bem-estar
mental, na forma como agimos para cultivar (ou como não conseguimos
cultivar) os nossos sentimentos e como lidamos com as nossas emoções
e com aquilo em que pensamos.
Contemplando
o vazio, é possível libertarmo-nos da garra da fixação da mente.
Mesmo em termos de karma, Nagarjuna declara que, se nos fixarmos no
agente, na acção, etc – seremos incapazes de nos libertarmos
dele. O resultado torna-se o oposto, pois pensar em linhas fixas leva
à proliferação conceptual (propanca). Basicamente, a mete começa
a desconjuntar-se. Não só damos mais realidade ao que vemos,
cheiramos, provamos e tocamos, como também começamos a imaginar a
existência de todo o género de coisas que não existem. Deus, alma
e entidades dessa natureza são exemplos disso, de acordo com
Nagarjuna. O mero facto de sermos capazes de pensar em algo leva à
nossa tendência de achar que deve haver um objeto concreto
correspondente a esse pensamento. Aparentemente, parece lógico que
assumamos que, se somos
capazes de pensar num ser assim e assado, ele deve, por consequência,
existir – caso contrário, de onde viria a capacidade de o pensar?
Os filósofos e teólogos ocidentais do passado usaram este mesmo
argumento para defender a existência de um ser omnipotente e
omnisciente, insistindo que a nossa dotação desta faculdade mental,
da capacidade de imaginar um ser omnisciente provaria que tal ser
teria de existir.
Nagarjuna
usou aquilo que viria a ser conhecido como a «navalha de
Prasangika», a qual se refere essencialmente a abater todas as
posições filosóficas, um corte pela raiz de tudo o que pensamos. É
uma análise implacável de todos os argumentos acerca de uma
existência real ou verdadeira. Ele teve seguidores que levaram as
suas teorias ainda mais longe, como Chandrakirti e os Prasangika
Madhyamikas, que empregaram um sistema de reductio ad
absurdum, reduzindo ou demolindo
toda e qualquer posição filosófica às suas inconsistências
fundamentais, sem tomarem eles próprios uma posição. O argumento
principal que aqui se pretende indicar é a insistência de Nagarjuna
de que, devido ao facto de todas as coisas surgirem de forma
dependente, nada tem existência inerente, pelo que tudo é vazio.
Isto não é uma visão de puro vazio, que seria a consclusão da
visão niilista. Nagarjuna pensava na verdade que a abordagem
niilista estava completamente equivocada, era um tipo letal de
pensamento, suicida; como agarrar incorretamente numa serpente pela
cauda, deixando-a virar-se, morder-nos o braço e envenenar-nos.
Portanto, é completamente erróneo interpretar Nagarjuna como alguém
que negasse a existência do karma. Na verdade, ele declara que é
bem melhor reverter para formas convencionais de pensamento,
acreditar que as coisas existem de facto, como faz quem segue o
sentido comum, do que ter ideias niilistas quanto a nada existir de
facto. Esta é uma questão crucial para compreender o budismo.
Porque tudo surge de forma interdependente, o karma também é um
fenómeno que surge interdependentemente, a que falta existência
inerente, pelo que é possível superá-lo. A lógica de Nagarjuna
também explica por que razão samsara
e nirvana são conceitos dependentes. Sem samsara não pode haver
nirvana e sem nirvana não pode haver samsara. Isto é elaborado no
seu texto principal, Versos Fundamentais Sobre o Caminho do
Meio (Mulamadhyamakakarika).
Há
dois argumentos a apresentar quanto à aplicação da abordagem de
Nagarjuna à teoria kármica. Por um lado, ele encoraja-nos a
abrirmos mão da nossa fixação por várias coisas, por objectos
mentais, essencialmente, enquanto por outro nos alerta para o perigo
de substituir essa tendência pelo pensamento niilista, que ele
encara como uma séria armadilha. Também deve ser mencionado que
alguns dos sucessores de Nagarjuna acabaram por criticar os próprios
yogacharyas por se fixarem nalgumas das suas próprias ideias de
base, como as oito formas de consciência.
Ao
falarmos de Nagarjuna, falamos de filosofia, o que nos traz a uma
distinção interessante muitas vezes feita no budismo, entre o
intelecto e perceção (prajna). É muito comum julgar-se que a
perceção se gera através do estudo da filosofia. É claro que se
alguém estudar Nagarjuna, isso será proveitoso, mas há uma forma
que é superior à forma puramente intelectual de estudar, que é a
via contemplativa, ou meditativa. Continua-se a pensar, a seguir o
mesmo processo de raciocínio, mas a um ritmo mais lento e empregando
uma variedade de faculdades mentais, estados e processos físicos
para manter a concentração no tema, no objecto de contemplação.
Na verdade, precisamos de nos aperceber
de que há diferentes formas de pensar. Quando dizemos «pensar» no
nosso uso quotidiano da palavra, referimo-nos realmente a muitos
modos diferentes de «pensar». Pensando de uma forma puramente
intelectual, podemos ganhar alguma perceção, mas nenhum dos outros
aspectos do pensamento e do ser é envolvido; trata-se de uma coisa
puramente intelectual; opera por si mesma. É quase um exercício
intelectual, mas esse exercício poderá acabar por ser uma atividade
mais ou menos neutra, de um ponto de vista espiritual.
Mesmo
quando procuramos perceção, portanto, dependemos dos nossos
recursos e legados kármicos. Precisamos de usar os nossos próprios
recursos disponíveis para ganharmos perceção, ou prajna.
No entanto, diz-se muitas vezes que o prajna destrói
o karma, destrói todas as características e disposições. Com a
espada do prajna, tudo
é demolido. Em dado nível, isto é verdade, mas só no nível
absoluto. Em termos relativos, o prajna também
depende de causas e condições kármicas pré-existentes. Assim,
certos indivíduos poderão estar mais predispostos a ter uma maior
perceção. Se assim não fosse, todo este esforço não teria a
menor importância – toda a gente teria as mesmas perceções e o
mesmo nível de perceção e tudo seria idêntico, de um indivíduo
para outro. Mas não é assim, claro. A compreensão é sempre
contingente ao nível de desenvolvimento do indivíduo. Uma pessoa
altamente desenvolvida, que tenha passado pelo tipo de autocultivação
que temos abordado, ao
alcançar um certo nível de presciência terá uma perceção mais
acutilante e abrangente do que alguém sem esses antecedentes.
Muitas
vezes, se buscarmos realmente a perceção de uma forma puramente
intelectual, tornamo-nos introvertidos. Pensamos no assunto como um
exercício muito solitário, pois imaginamo-nos a entrar e a ir ao
fundo no nosso pensamento. O mundo exterior, outras pessoas e outros
seres vivos tornam-se uma distração e prestar-lhes atenção uma
inconveniência. Todos representam o mesmo para nós, que é tempo
roubado à nossa reflexão profunda, a missão que tanto prezamos.
Porque estamos a tentar desvendar estas questões complexas da vida
ou da metafísica e precisamos deste «tempo para mim», fechamo-nos.
O budismo encara o tipo de perceção obtido desta forma como
inferior. A perceção é muito mais valiosa quando nos tornamos mais
atentos, mais generosos e mais úteis para os outros. Não teremos
uma mente tão fechada se optarmos por esta adordagem equilibrada.
Para este fim, o próprio Buda ensinava a meditação do amor-bondade
(metta-bhavana). Ele
dizia que o metta-bhavana era
crucial para o desenvolvimento do prajna, ou
da perceção. No budismo, não há uma separação estrita do
aspecto cognitivo da nossa mente e do seu aspecto emocional e
afetivo. A nossa capacidade cognitiva deve ser apoiada pela riqueza
do nosso repertório emocional, dos nossos recursos emocionais. Por
outras palavras, se formos emocionalmente estéreis, secos, até a
nossa capacidade cognitiva ficará comprometida, com uma eficácia
reduzida. É por isto que se diz que a meditação do amor-bondade
nos ajudará a pensar com clareza e a ver as coisas com clareza. Tudo
o que fazemos para obter uma perceção adequada produz bom karma.
Precisamos de estar atentos a várias frentes, está saudável, num
estado positivo, e, emocionalmente, ao nível
dos sentimentos, precisamos
de garantir que não estamos rígidos e fechados. Prestar atenção a
tais coisas produz bom karma, o que, por sua vez, leva a que
obtenhamos perceção. A perceção deriva da criação de karma
positivo e de fazer o género de coisas que superam o karma negativo.
Aos
seguidores de Nagarjuna, chama-se Shunyavadins, ou
«expoentes da escola do vazio» - shunya
significa «vazio» e vadin «expoente»
Na verdade, considera-se que aqueles que seguem a escola de
pensamento Madhyamaka são Shunyavadins.
Por vezes os Shunyavadins
empregaram as ideias de Nagarjuna como uma espécie de arma contra
os primeiros budistas sugerindo que o karma não existe. Indicam o
capítulo do Mulamadhyamakakarika em que Nagarjuna fala do karma e
afima não haver agente, nem ação. Até declara que não existe
nirvana. Consequentemente, várias pessoas, e os Shunyavadins
em geral, sugerem que não é preciso levar o karma muito a sério,
já que afinal, este na realdade não existe. Se não há agente, nem
acção, como poderia produzir-se karma? É verdade que Nagarjuna
afrma algo muito próximo disto em certo sentido – de que o karma é
ilusório. No entanto, ao fazer tais declarações, não sugere que
não haja karma, ou que não exista agente. O que se passa é que
aborda as coisas a partir do ponto de vista absoluto, o qual nega um
agente com existência independente. Continua
a haver um agente, que não é contudo autónomo, algo que já
abordámos em relação a Buda. Portanto, não existe aqui
contradição real alguma. Nagarjuna não declara que não haja um
agente ou uma acção. Um agente é um agente porque tem a capacidade
de realizar acções; sem acções, não pode haver um agente. Assim,
existe aqui uma equivalência. Ele disse o mesmo em relação à
causa e ao efeito kármico. Pensamos que uma causa tem mais realidade
do que um efeito porque sem causa não poderá haver efeito. A causa
parece, de certa forma, ter mais realidade, porque um efeito deriva
de uma causa, mas uma causa não deriva de um efeito. Por
conseguinte, a causa tem primazia sobre o efeito. Nagaruja punha em
questão esta ideia com a sua noção de origem interdependente. Tudo
surge porque tudo depende de tudo o resto. Causa e efeito são
vistos como mutuamente dependentes um do outro, e o mesmo se aplica a
agente e acções. É impossível existir um sem o outro. É esta a
interpretação correta do vazio do karma.
Vê-lo
de outra forma seria divergir da visão do meio defendida por Buda.
Dizer que o karma não existe
de todo, que é completamente ilusório, seria um extremo, e pensar
que existe de facto, que a causa e o efeito kármico têm uma
realidade verdadeira, seria o outro extremo. Para Nagarjuna, o karma
não tem realidade verdadeira porque carece de existência inerente,
mas manifesta-se. É um fenómeno manifesto; nesse sentido, é real,
existe. Poderá parecer uma distinção bastante pedante a fazer, mas
é crucial para o pensamento Shunyavadin, pois,
se algo tem existência inerente, não pode ser removido e, no
budismo, o objectivo é superar o karma. O karma pode ser superado e
algo que pode ser superado não pode ter existência inerente.
No
fundo, pouca diferença há entre o que dizem os Shunyavadins
e os ensinamentos de Buda. Tudo se resume a ver as coisas como reais
ao nível convencional, mas não ao nível derradeiro. O karma não
tem uma realidade intrínseca, mas é real a outro nível, porque o
experienciamos. Por exemplo, enquanto estamos acordados, temos uma
espécie de realidade – isto é real – mas, quando sonhamos,
enquanto o sonho dura, também tem uma realidade própria. É real
enquanto acontece; no contexto onírico, o sonho é real enquanto
sonho. Similarmente, as experiências da nossa vida quotidiana,
incluindo as do nosso karma, são reais na medida em que, enquanto
não formos iluminados, permanecerão reais e será assim que as
experienciaremos. Em última instância, contudo, não são reais,
pelo que podem ser superadas. Não estamos ligados a uma realidade
kármica de uma maneira tal que nos condene a uma recorrência eterna
do mesmo morrer, renascer, morrer, renascer – um ciclo interminável
de vida e morte. Há um ponto terminal, de acordo com o budismo.
Até
o véu da ignorância nos ter abandonado, continuaremos a
experienciar o domínio que as coisas têm sobre nós, mas isso não
significa que todas as nossas experiências tenham alguma realidade
intrínseca. A resposta budista a esta questão
acerca da realidade do karma não é limitada. Como o próprio
Nagarjuna disse, não se pode responder simplesmente numa direção
ou noutra, com um sim ou um não. Ele responderia a tais perguntas
colocando uma outra: «Em que contexto?» Estamos a falar da
perspectiva da realidade, ou da prespectiva da aparência? A partir
do ponto de vista da realidade, o karma e tudo o mais que
experienciemos neste nível empírico de existência não tem
qualquer essência duradoura e, por conseguinte, não é real. Mas
dizer que não há realidade também é falso. Tudo o que
experienciamos deve-se ao facto de o karma estar tão intimamente
ligado a tudo o que fazemos. Encontra-se na própria trama das nossas
vidas, naquilo de que gostamos e de que não gostamos. Tudo é
apropriado em termos das nossas próprias experiências subjetivas e
do nosso nível subjetivo de ser. Estas experiências deixam marcas
na nossa consciência, que é semelhante a um rio, a um acontecimento
fluido e dinâmico. Por conseguinte, ainda que a consiência não
disponha de estabilidade, apenas de estados sucessivos, e nada
permaneça, continua a acontecer. Continua a haver um tráfego de
dois sentidos entre a informação que chega e é processada,
deixando marcas kármicas no inconsciente, e a reação exterior,
onde as marcas estimulam o indivíduo a responder de uma forma
predeterminada.
Estes
padrões, criados por nós
mesmos ao longo da nossa vida não podem ser rejeitados assim sem
mais, motivo pelo qual o budismo, e em particular a corrente
Mahayana, enfatiza a não dualidade da aparência e da realidade, ou
da verdade relativa e derradeira. Isto é visto como absolutamente
crucial. Mesmo na visão muito profunda dos ensinamentos Dzogchen, em
termos de conduta, tudo tem de estar enraizado nas nossas
experiências quotidianas. Não podemos flutuar nalguma espécie de
espaço vago de «as coisas como elas são» ou a «realidade de
todas as coisas». Começamos com a necessidade de prajna,
perceção, para atravessar, transcender os nossos laços kármicos.
No entanto, o prajna obtido
deve então permitir-nos conquistar este equilíbrio entre o que é
relativamente real e o que é absolutamente real. É essa a questão
principal, pois, se pendermos para qualquer um dos lados, não
seremos capazes de atingir a realização completa. Sem todas as
emoções e sentimentos associados à realidade relativa, a
realização da realidade derradeira não ocorrerá. Isto é
estabelecido de forma muito clara. Diz-se frequentemente que, na
qualidade de sérios praticantes do budismo, estamos sempre a
equilibrar-nos nesta corda bamba da aparência e da realidade. De
facto, é por isso que se diz que atingir a iluminação acontece em
dois níveis diferentes – físico e mental. Ao nível físico,
chama-se rupakaya, em
que rupa significa
«forma» e kaya significa
«corpo», ou seja, «forma de corpo». Ao
nível mental, chama-se dharmakaya,
o que quer dizer, neste contexto, «realidade absoluta».
O
rupakaya, ou aspecto
formal do corpo de Buda, corresponde à realidade relativa, enquanto
o dharmakaya corresponde
à realidade absoluta. O aspecto formal do corpo relaciona-se com a
cutivação de certas faculdades mentais e de um certo reportório
emocional e variedade de tons emocionais – ao nível relativo. Os
budas realizaram a forma corporal por causa da cultivação emocional
acima discutida, e é por isso que se diz que permanecem neste mundo
por compaixão. No entanto, este mundo não os macula, pois também
atingiram o corpo sem forma, o dharmakaya,
ou o autêntico estado mental de Buda. Diz-se assim no budismo
Mayahana que um verdadeiro buda reside naquilo a que se chama
«nirvana não permanente».
Não
obstante, a libertação não poderia ser assegurada se não fosse o
karma. É essa a visão. Assim, mediante a cultivação de nós
mesmos, atingimos o corpo formal do Buda em relação às nossas
capacidades mentais e emocionais e a fatores físicos. Para além
disso, através da cultivação da perceção, atingimos o aspecto
sem forma do ser de Buda. Considera-se que resultam de dois tipos de
acumulação: a acumulação de mérito e a acumulação de
sabedoria. No budismo, a ideia não é abrir mão de tudo, como se
costuma ouvir dizer. Ao mesmo tempo que abrimos a mão de certas
coisas, devemos armazenar outras, motivo pelo qual se fala das duas
acumulações. Através da acumulação de mérito, atingimos o corpo
formal de Buda e, através da acumulação de sabedoria, adquirimos o
corpo mental de Buda, o dharmakaya.
Portanto,
a um nível, a teoria kármica não se encontra desenhada
simplesmente para encorajar as pessoas a criarem bom karma e a
evitarem o negativo – a levarem uma vida moral, por outras
palavras. A libertação advém de perder os dois géneros de
grilhetas. Tradicionalmente,
o karma negativo é comparado com estarmos presos com grilhetas de
ferro, e o karma positivo a
grilhetas de ouro. Mesmo com grilhetas de ouro, não somos livres;
portanto, é ao libertarmo-nos de todas as grilhetas que encontramos
liberdade genuína. Isto é afirmado nos discursos originais de Buda,
bem como no Mahayana. Ainda assim, é preciso dialogar com o nosso
karma. Não há como evitá-lo. Tentamos superar o karma negativo
cultivando karma positivo, trabalhando rumo à sueração final até
relativamente ao karma positivo. Buda definiu três categorias de
karma: karma positivo, karma negativo e karma não produtivo. O karma
não produtivo leva-nos de novo à origem da ideia como ação.
Pessoas más a fazerem coisas más criam karma negativo, pessoas boas
a fazerem coisas boas criam karma positivo, e aquelas que deveras se
esforçam por avançar no caminho espiritual, tendo como objectivo a
iluminação – as acções destas não produzem karma algum, motivo
pelo qual lhes é possível atingir o nirvana.
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